A PARTIR DO 3º CICLO DE CINEMA E DIREITOS HUMANOS
A
película Utopia e Barbárie, de Sílvio Tendler, de 2009, apesar de
um pouco cansativa, pela quantidade de informação condensada na
obra, traça um enorme e profundo panorama, dentro do que é possível
no contexto de um filme, da luta entre forças antagônicas, que
permearam a história da humanidade desde sempre. O filme nos traz,
por meio de relatos de artistas, protagonistas dos diveros eventos e
cineastas, recortes cinematográficos e observações do próprio
diretor sobre a disseminação da barbárie e das chamadas utopias
que a ela se contrapõem.
Eventos
como a segunda guerra mundial e os crimes de Hitler; a revolução
russa e os crimes de Stálin; a revolução cultural na China e o seu
desmascaramento, expondo os crimes de Mao; a guerra no Vietnam e a
resistência ao imperialismo norteamericano; a guerra do Japão
contra a Coreia e a sua consequente divisão em dois mundos; os
golpes na América Latina (Argentina, Brasil, Chile e Uruguay) e a
carnificina dos regimes totalitários; as revoluções em Cuba, pela
força, e no Chile, pelo voto, e as ofensivas brutais do capital com
vistas à sua destruição; a resistência utópica dos eventos de
maio de '68, na busca pela liberadade e libertação dos costumes; os
conflitos no Oriente Médio e o genocídio do povo palestino; a
redemocratização na América do Sul, trazendo de volta a esperança
em dias melhores; a desconstrução do bloco soviético e o demonte
de um sistema opressivo no qual se converteu a revolução de '17, e,
finalmente, o avanço livre do capital sobre as nações são alguns
eventos que deixam em aberto uma reflexão para além das relações
políticas e econômicas na humanidade.
Imediatamente,
a partir da exposição dos conflitos e lutas políticas travadas na
civilização durante o século XX, e no período que compreende a
segunda guerra mundial e a primeira década do século XXI, o
espectador é transportado para uma obra clássica da psicanálise,
qual seja: O Mal Estar na Civilização, de Sigmund Freud. Durante o
filme, tem-se a sensação de estar relendo aquele texto em outro
contexto ou corte histórico, tendo em vista o desaparecimento de
Freud no início da segunda guerra, em 1939.
A
abertura do debate, com a pergunta da professora Rosane Kaminski
sobre possíveis formas de resolução do impasse entre utopia e
barbárie, nos leva de volta ao texto freudiano acima citado e a um
outro texto que lhe é complementar, qual seja: Além do Princípio
do Prazer. Ora, ambos os textos nos dizem de uma luta perene na
civilização entre essas forças que compoem a dualidade pulsional
humana, segundo o pensamento freudiano. E o próprio filme, que se
encerra com reticências nos diz dessa perenidade.
E
essa perenidade, essa continuidade da luta travada entre a vida e a
morte, o bem e o mal, ou utopia e barbárie, está inscrita no
momento histórico atual, tanto no Brasil como em todo o mundo. Por
toda parte há uma ascensão expressiva do fenômeno fascista,
exigindo uma mobilização das chamadas utopias, que urgem se
reinventar e se reorganizar, para se contrapor a ele e preservar a
continuidade da civilização.
É
preciso preparar o estômago para vislumbrar a macabra obra humana,
há cenas fortes da obra nazifascista, sem perder de vista que
estamos falando do maior predador que jamais existiu, a obra mais
destrutiva jamais criada pela natureza, ou por deus, como queiram.
São os ciclos de luta intestina da nossa civilização, que se
repetem em uma disputa violenta, por vezes até poética, de amor e
ódio que, a meu ver, estão representadas nas reticências com que
Sílvio Tendler encerra a sua obra.
No
segundo encontro do 3º Ciclo de Cinema e Direitos Humanos nos foi
apresentada a película Ação entre Amigos, do diretor Beto Brant,
de 1998, que, ao final, provocou um silêncio sepulcral em toda a
audiência. O filme que traz a história de três amigos que nos anos
de chumbo (final dos anos sessenta, década de setenta e início dos
oitenta) participaram da resistência à ditadura militar, nos coloca
uma questão que vai muito além do resgate histórico produzido pela
Comissão da Verdade durante os governos petistas, e que é uma
questão crucial para o entendimento dos dias atuais no Brasil.
A
ação entre os amigos se dá após um dos quatro companheiros
descobrir que o torturador e assassino do regime, que os havia
torturado e assassinado a companheira de um deles, permanecia vivo,
apesar da divulgação de sua morte em um acidente aéreo. A ação
de acerto de contas, de vingança mesmo, se torna uma tragédia que
não apenas ceifa a vida do velho torturador, mas também a de dois
componentes do grupo, a prisão de um deles e o aumento da tortura
psicológica do último que, provavelmente, também seria preso por
participação no evento.
Além
de trazer um ralo panorama sobre aqueles eventos trágicos que
fizeram parte de um período sombrio da história nacional, por meio
da história de vida daqueles amigos que se apresenta alternadamente
entre os dias atuais e flashbacks de memória daquele período por
eles vividos, o filme nos traz, de maneira sutil, os efeitos
deletérios da anistia ampla e irrestrita acordada com as elites no
momento da "redemocratização" do país. A Ação se
converte assim em uma resposta ao que ficou aberto, inconcluso, não
resolvido, ou seja, a não criminalização e punição objetiva aos
crimes e criminosos da ditadura militar.
O
debate que se seguiu, com o professor doutor Rodrigo Czajka, do
DECISO/UFPR, trouxe muitas perguntas sobre o momento dramático
vivido no Brasil atual, com a ascensão do fascismo e o apoio de boa
parte da população à repressão, à eliminação do diferente, e
ao autoritarismo. O Brasil atual é um campo fértil para a ascensão
de um regime totalitário, de viés civil ou militar, haja vista as
condições plantadas pela direita a partir dos eventos de 2013, e do
golpe de 2016, com o objetivo de implantação de seu projeto
político-econômico neoliberal.
Hoje,
no Brasil, o programa de governo ou projeto de nação mais bem
cotado nas pesquisas para ascender ao poder é um não-programa
ou um não-projeto, sustentado nas entrelinhas na continuidade
do projeto econômico golpista, e objetivamente apenas em discurso de
ódio aos negros, aos índios, às mulheres, aos homossexuais, aos
pobres e à diferença. Ora, a não punição aos crimes e
criminosos de um regime ditatorial sangrento, como o regime e a
ditadura militar vivenciado pelo Brasil entre '64 e '85, relativisa a
sua ação criminosa, escancarando as portas para o seu retorno,
tutelado ou não pela força militar, mas certamente tutelado pela
população deseducada.
Recentemente,
o consórcio criminoso firmado entre as bancadas da Bala, do Biblia e
do Boi, recebeu elogios de um antigo diretor da organização racista
e criminosa Ku Klux Klan, mas também alertas de provável rompimento
com a Alemanha e, consequentemente, a União Europeia. Para aqueles
que apostam no “novo”, não deixa de ser uma novidade a União de
uma ultra direita fascista, com tempero tupiniquim, com o um projeto
econômico ultra neoliberal. Aqueles que sobreviverem poderão
avaliar o resultado de uma aventura tão perigosa...
O
terceiro encontro do 3º Ciclo de Cinema e Direitos Humanos, que
trouxe o documentário Memória para Uso Diário, com direção de
Beth Formaggini, foi um grito e um apelo ao bom senso. O documentário
traz uma série de depoimentos de pessoas que vivenciaram os horrores
da ditadura militar no Brasil, e a busca por desaparecidos e
reparação dos crimes perpetrados por aquele regime sanguinário,
que assombrou e continua assombrando o Brasil até os dias atuais. O
filme mescla depoimentos sobre os crimes cometidos pela ditadura e
crimes cometidos pela polícia do estado democrático, guardiã do
status quo e do poderio econômico, deixando claro que a prática de
extermínio do oponente, ou do Outro, é uma prática que se
perpetuou nos sistemas de repressão do estado, mesmo durante a
chamada Nova República.
O
debate nos trouxe fatos estarrecedores sobre o período do regime
militar e da ditadura, provocado pelo doutor Olympio de Sá Sotto
Maior Neto, do MPPR que provocou a audiência para um debate
acalorado, carregado de afetos e apelos ao bom senso, tendo em vista
o momento ímpar de nossa história política, às vésperas de uma
eleição que pode colocar um nazifascista na presidência da
República. Um dado extremamente estarrecedor, trazido durante o
debate, foi a prática genocida, perpetrada no período ditadura
militar, contra a nação índigena Xetá, para roubo de terra e
favorecimento de grupo econômico. Boa parte da nação Xetá foi
dizimada. Os índios eram levados em caminhões e desapareciam,
aqueles que não aceitavam ser levados eram fuzilados e,
perversamente, aos que ficaram para trás, foi fornecido alimento
invenenado. E isso só tem um nome: genocídio! Além dos depoimentos
sobre os centros de tortura no Paraná, dos quais o mais notório se
encontrava em Foz do Iguaçu, soubesse também que pequenos
fazendeiros também foram presos e torturados naquele período. Ou
seja, a ditadura não apenas matou seus oponentes políticos,
torturou e matou também aqueles que, de uma forma ou de outra,
atrapalhavam os planos financeiros e econômicos de uma elite
atrasada e selvagem.
O
período de transição da ditadura militar para o regime democrático
foi coroado com acordos obscuros de proteção aos criminosos daquele
regime e de favorecimento das elites econômicas e corruptas que
compuseram com o regime de exceção. A constituição de '88, que
trouxe alguns avanços no campo social, jamais foi, de fato,
respeitada pelos governos que se seguiram, como parte do acordo
firmado para o fim da ditadura, que permaneceu ativa em suas formas
repressivas, ligadas ao aparelho de estado. Quando ascendeu ao poder
um governo de esquerda no país, que para tanto migrou para o centro,
e tentou implementar o mínimo do que era previsto no texto
constitucional, as elites se sublevaram, promovendo o golpe
parlamentar de 2016, e trazendo de volta a sombra da ditadura
militar, na figura do candidato de ultra direita que se apresenta
como favorito nas eleições de 2018.
Sobre
o fim abstrato do regime ditatorial que vigorou oficialmente entre
'64 e '85, não posso deixar de lembrar que após essa data corte,
durante um movimento grevista geral, por melhores condições de
trabalho, salário e atendimento à população, passamos por uma
situação que não fica em nada a dever aos momentos de repressão
do período oficial da ditadura militar. Juntamente com alguns
colegas, - não sei precisar exatamente quantos éramos! - em um
piquete na porta da garagem central de ônibus, fomos surpreendidos
pelas forças de repressão que nos torturaram psicologicamente e nos
mantiveram sumidos durante um certo tempo, enquanto discutiam o que
iriam fazer conosco. Fomos presos por volta de 11 horas da noite e
chagamos ao nosso destino por volta de 04 horas da manhã, de acordo
com o horário do relógio de parede do local onde ficamos detidos.
Nesse meio tempo, rodamos em camburões por estradas de terra, dentro
do mato, sem ter a mínima noção de onde estávamos. A técnica de
tortura psicológica era a seguinte: a uma certa altura o camburão
parava no meio do mato e éramos retirados aos solavancos, ao que
pensávamos: é nosso fim! Mas, na verdade, apenas éramos dirigidos
a outro camburão, que continuava a louca corrida. Lembro que tive
que acalmar um colega, que começou a ter falta de ar, e coloquei sua
cabeça próximo às frestas do carro, pedindo que ele respirasse com
calma que tudo acabaria bem. Quando finalmente chegamos ao destino,
estávamos tão atordoados que não lembro até hoje onde foi que
descemos. Não fomos registrados nem fichados, mas apenas
encaminhados a celas individuais e imundas, após subir uma escada e
colocados em celas que circundavam um átrio. Alí ficamos, sem
lençóis, sem comida, sem água. Deitávamos e acordávamos para
gritar pelos companheiros, com o objetivo de saber se todos
permaneciam ali. Lembro-me perfeitamente da cela com cama de cimento
armado, ligada à parede e do vaso quebrado e sujo, e de ratos
enormes que circulavam de quando em vez, atravessando a cela. Assim
ficamos por um longo período! Só fomos registrados quando, não sei
como, nos descobriram e um advogado do Partido dos Trabalhadores foi
nos resgatar daquele sequestro.
Uma
colega de trabalho, cujo marido era delegado e participou da
operação, contou-me logo depois que, enquanto estávamos presos,
três delegados discutiam e divergiam sobre o que fazer conosco.
Havia em pauta uma ideia de eliminação, uma de espancamento e outra
de apenas registro de ocorrência, por “não estarmos mais sob a
ditadura militar”. Um dos delegados era um notoriamente conhecido
psicopata que, segundo um colega de faculdade que com ele trabalhava
me relatou, pouco tempo depois, era uma pessoa que ficava nervoso
diariamente e dizia que isso se dava porque precisava matar uma
pessoa por dia para se acalmar. Algum tempo depois esse cidadão
sofreu uma atentado, e morreu por ferimentos de 77 balas de fusil.
Esse cidadão, no momento da prisão, levantou-me com apenas um braço
apenas, pela alça do macacão que eu usava e disse para mim: isso lá
é roupa de homem! E, em seguida, me jogou no camburão.
É
caros amigos, o risco que corremos hoje é incomensurável! Além de
perder o arremedo de democracia que nos foi permitido alcançar, e
que aos poucos já vimos perdendo desde 2016, com a possível eleição
de um nazifascista oriundo do exército, corremos o risco de perder
definitivamente nossos direitos, inclusive o direito sagrado à
própria vida...
E
como, sabiamente, já anunciou o professor Vladimir Safatle, os
tanques já começam a se posicionar...e as manobras de bastidores do
exército pululam por toda parte, só não vê quem, infelizmente,
tem menos de dois neurônios, ou realmente não quer ver...
No
último encontro do 3º Ciclo de Cinema e Direitos Humanos,
assistimos o filme Iracema: Uma transa amazônica, com direção de
Jorge Bodanzki e Orlando Senna. O filme, rodado durante a década de
setenta, ganhou vários prêmios internacionais e só foi liberado
pela censura em 1981, por ter sido entendido como uma publicidade
negativa do Brasil pela Ditadura Militar. Há um jogo interessante na
trama entre a realidade cruel daqueles anos (miséria, violência,
desmatamento, comércio ilegal de madeira, trabalho escravo,
prostituição juvenil, alienação popular tutelada pela religião e
pelo exército, invasão estrangeira) e o discurso neoliberal que
começava a se fazer presente naquela época.
Pode-se
dizer que os personagens centrais da trama, apesar de supostamente
ocuparem campos opostos na história, fazem parte do mesmo ufanismo
vigente naqueles tempos. Ambos, cada um a seu modo, foram cooptados
por discursos falsos de possibilidades e sucesso. Iracema, uma
adolescente que sai do mato para se encantar e desencantar com a
vida “civilizada”, e Tião Brasil Grande, caminhoneiro que tenta
sobreviver acreditando na máxima neoliberal, que tomava corpo
naquela época, de que esforço pessoal, e apenas, isso, era a chave
para o sucesso. A película traz imagens da construção da
Transamazônica, uma das obras faraônicas do período da ditadura
militar, alardeada à época como o caminho para o progresso da
região, em meio às mazelas, reais até os dias atuais, da miséria,
da desigualdade e da repressão.
A
história de Iracema, uma bela mestiça da terra, é a metáfora
perfeita da pátria, hoje mais que nunca, em tempos de exposição
explícita de suas víceras, tão des-amada, tão des-idolatrada,
desnudada em sua sina servil. Iracema era bonita e se encantava com
os brilhos que a seduziam. Prostituiu-se, e por aí tentou achar uma
saída para sua existência. Pegou uma carona e pensou ter,
finalmente, encontrado seu rumo para o amor e uma vida melhor.
Enganou-se e foi abandonada. Largada na vida, foi novamente enganada,
foi jogada na estrada, foi acusada e espancada, e foi provavelmente
estuprada pela repressão. Alguém tentou lhe estender a mão, mas
ela acreditava no seu algoz. Acreditava que não poderia fazer nada
além daquilo que já fazia, porque era burra.
Enfim,
Iracema não acreditava mais em si mesma. Assim, ela foi decaindo
cada vez mais, perdeu um dente, ganhou cicatrizes e nela não se via
mais um fio de dignidade. Reencontrou aquele que lhe havia jogado na
estrada pela primeira vez, que a despeito da própria miséria ainda
acreditava no sucesso pessoal, no esforço que constrói o futuro do
pobre, e que lhe incutiu na cabeça a ideia de sua burrice.
Reconheceram-se e ela quis mais uma vez seguir com ele, que a
desdenhou. Ela lhe pediu dinheiro que ele negou, e seguiu em frente,
com seu esforço na busca de um sucesso que jamais chegará. Iracema,
na beira da estrada, o xingou muitas vezes...e riu, riu de simesma,
do caminhoneiro e do Brasil.
Sim,
Iracema é uma metáfora mais que perfeita de uma terra e de uma
gente maltratada, humilhada, enganada, controlada e violentada tantas
e tantas vezes, e que não acredita em si mesma, mas que vai se
virando pela vida. Toda essa gente vai seguindo como pode, recorrendo
sempre ao algoz, e rindo, rindo muito de si mesma...e elegendo
Projetos que dão continuidade à desconstrução do Estado, da
Seguridade Social, da Educação Pública, que rejeita a
intelectualidade, acrescido de Violência contra as chamadas
minorias, os Movimentos Sociais e os Trabalhadores.
Triste
Brasil!
Sérgio Moab Amorim de Albuquerque - CRP 08/08067-7