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sexta-feira, 16 de novembro de 2018

PENSANDO DIREITOS HUMANOS




A partir do 1º Ciclo de Cinema e Direitos Humanos 
 
O filme Negação, do diretor Mick Jackson, de 2016, o primeiro do Ciclo, e que versa sobre liberdade de expressão, aprofunda a discussão sobre a liberdade do indivíduo expressar suas opiniões, e traz uma reflexão importante sobre a sustentação da verdade, fundamentada ou não em provas. Poderíamos então nos perguntar, a partir da proposta do filme, o que seria, de fato, a verdade, sem uma prova que a sustente?! Uma verdade sem sustentação probatória escapa inexoravelmente ao campo da verdade, passando a vigorar no campo da fé.

A trama gira em torno de um processo aberto por um suposto historiador, que, de forma leviana, sem provas e movido por sua paixão pelo nacional socialismo alemão, nega a existência do holocausto, contra uma jornalista que o denuncia em seu livro. À medida em que se desenrola a trama, percebe-se a atualidade dos fatos levantados e a relação com os eventos vividos no Brasil e no mundo, na atualidade globalizada.

No Brasil dos últimos tempos, vivemos em um mundo anacrônico e desconectado da relaidade tangível, com a instauração de processos kafkianos de viés político patrocinados pela Justiça, e tentativas de encobrimento dos crimes e dos criminosos que vicejaram durante o período da ditadura militar entre '64 e '85.

Na esteira dessa profunda negação da verdade, presenciamos o nascer de processos sociais que buscam relativizar as desumanidades, praticadas ao longo de nossa história, passada e recente, promovidas contra grupos étnicos específicos de concidadãos, e uma perseguição implacável a indivíduos com orientação sexual diversa da norma em nosso meio. Neste país, definitivamente contaminado por um fundamentalismo pentecostal, sustentado por um pensamento conservador de ultra direita, vivemos uma situação de negação absoluta da intelectualidade, do pensamento crítico, das luzes, e da verdade empiricamente fundamentada.

No momento em que vivemos um processo generalizado de disseminação de fake news, com profunda interferência nos processos democráticos, e tentativas de revisão de diversos fatos históricos, com o objetivo de encobrir graves crimes contra a humanidade, o filme parece bastante atual, e de grande relevância para o pensar dos rumos que tomaremos daqui para frente em nossa conturbada civilização.


O segundo filme apresentado no 1º Ciclo de Cinema e Direitos Humanos, As Sufragistas, de 2015, da diretora Sarah Gavron, trata do movimento de mulheres na Inglaterra nos momentos iniciais do século XX, pelo direito ao voto.

No desenrolar da trama, que gira em torno do gradativo envolvimento da personagem Maud, é possível perceber a condição da mulher naquela época, sem direitos, sem voz e completamente subserviente ao homem, seja em casa, onde exerce uma segunda jornada de trabalho e não tem direito legal sobre os filhos, ou no trabalho, com salários menores que os dos homens, jornada bem maior e muito mais exaustiva e assédio de todos os tipos.
O acesso ao direito do voto, como claramente propõe a personagem principal em uma de suas falas, é a possibilidade de, pelo voto, mudar a Lei, favorecendo a busca de igualdade de direitos entre os gêneros, em uma sociedade naturalmente machista e excludente. Aliás, uma situação que, apesar de alguns avanços dos direitos humanos, permanece inalterada em algumas sociedades dos dias atuais. E mesmo onde há avanços, há uma constante disputa e convivência morna com o machismo e o patriarcado.

Algo que fica evidente no filme é que, apesar da luta empedernida das mulheres pelo direito ao voto, a cultura machista da época, e a desonestidade que alimenta a política, são um entrave ao sucesso de suas reivindicações. Apenas quando há um suicídio diante do mundo, em um evento onde participa o próprio rei, as coisas começam a mudar e, gradativamente, a luta se espalha por outras nações, com consequente vitória das mulheres.

Nos dias atuais, quando há um avanço de forças conservadoras em todo o Globo, com a vitória da extrema direita em alguns países, inclusive no Brasil, essa é um discussão necessária e extremamente importante. No Brasil a extrema direita ascendeu ao poder, pelo voto, com um discurso violento, racista, homofóbico e misógino. Acende-se assim um grande alerta da importância da discussão de temas como este, que balizam em todo o sempre a questão da democracia e do exercício da cidadania.



O terceiro e último filme apresentado no 1º Ciclo de Cinema e Direitos Humanos, Milk, do diretor Gus Van San, trata dos problema enfrentados pelas pessoas LGBTs, e a busca por Direitos que garantam a sua existência como pessoa e cidadãos. Ele narra a trajetória do ativista Milk, que ascende em suas ações pelos direitos da comunidade LGBT, tornando-se o primeiro homossexual assumido eleito para um cargo público na California. Milk é assassinado por sua defesa dos direitos LGBT.

O filme mostra o nascimento de um espaço de expressão que, pouco a pouco, entra em choque com forças retrógradas, numa formação de reação contra a liberdade de expressão e o direito à existência de um determinado segmento social. É exatamente um filme para pensar o direito de ser em uma sociedade, plural em sua essência, mas que insiste em esconder essa pluralidade.

A homossexualidade é uma característica humana, muitas vezes também encontrada nos animais não pensantes, e que pode ser observada na civilização, em formas de expressão diversas, ao longo da história da humanidade.

O processo repressivo observado e combatido na modernidade, tem suas raízes no advento da igreja católica, apostólica e romana, e na idade média. Parece que o paganismo, até por conta da pluralidade de deuses que ostenta em seu Panthéon, era perfeitamente tolerante com a pluralidade de expressões do desejo humano. O monoteísmo transformou essa visão plural, típica da visão politeista, em uma visão monocular que vê o mundo e sua pluralidade natural de forma míope, algo estranho a ser combatido.

A idade das luzes trouxe uma abertura, pela via da ciência, para uma nova visão, em contraponto ao obscurantismo da igreja católica e da idade média. A partir do século XIX, e ao longo do século XX, as luzes buscaram clarear e entender a alma humana, e muitas lutas foram travadas pela afirmação de direitos de diversos segmentos, destituídos, e muitas vezes alijados, de seus direitos civis e de cidadania.


Sérgio Moab Amorim de Albuquerque - CRP 08/08067-7
Psicólogo / Psicanalista / Servidor Público
Formação em Gestão Estratégica de Pessoas / Abordagem Psicanalítica / Sociologia Política
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segunda-feira, 12 de novembro de 2018

PENSANDO DIREITOS HUMANOS


A PARTIR DO 3º CICLO DE CINEMA E DIREITOS HUMANOS
 
A película Utopia e Barbárie, de Sílvio Tendler, de 2009, apesar de um pouco cansativa, pela quantidade de informação condensada na obra, traça um enorme e profundo panorama, dentro do que é possível no contexto de um filme, da luta entre forças antagônicas, que permearam a história da humanidade desde sempre. O filme nos traz, por meio de relatos de artistas, protagonistas dos diveros eventos e cineastas, recortes cinematográficos e observações do próprio diretor sobre a disseminação da barbárie e das chamadas utopias que a ela se contrapõem.

Eventos como a segunda guerra mundial e os crimes de Hitler; a revolução russa e os crimes de Stálin; a revolução cultural na China e o seu desmascaramento, expondo os crimes de Mao; a guerra no Vietnam e a resistência ao imperialismo norteamericano; a guerra do Japão contra a Coreia e a sua consequente divisão em dois mundos; os golpes na América Latina (Argentina, Brasil, Chile e Uruguay) e a carnificina dos regimes totalitários; as revoluções em Cuba, pela força, e no Chile, pelo voto, e as ofensivas brutais do capital com vistas à sua destruição; a resistência utópica dos eventos de maio de '68, na busca pela liberadade e libertação dos costumes; os conflitos no Oriente Médio e o genocídio do povo palestino; a redemocratização na América do Sul, trazendo de volta a esperança em dias melhores; a desconstrução do bloco soviético e o demonte de um sistema opressivo no qual se converteu a revolução de '17, e, finalmente, o avanço livre do capital sobre as nações são alguns eventos que deixam em aberto uma reflexão para além das relações políticas e econômicas na humanidade.

Imediatamente, a partir da exposição dos conflitos e lutas políticas travadas na civilização durante o século XX, e no período que compreende a segunda guerra mundial e a primeira década do século XXI, o espectador é transportado para uma obra clássica da psicanálise, qual seja: O Mal Estar na Civilização, de Sigmund Freud. Durante o filme, tem-se a sensação de estar relendo aquele texto em outro contexto ou corte histórico, tendo em vista o desaparecimento de Freud no início da segunda guerra, em 1939.

A abertura do debate, com a pergunta da professora Rosane Kaminski sobre possíveis formas de resolução do impasse entre utopia e barbárie, nos leva de volta ao texto freudiano acima citado e a um outro texto que lhe é complementar, qual seja: Além do Princípio do Prazer. Ora, ambos os textos nos dizem de uma luta perene na civilização entre essas forças que compoem a dualidade pulsional humana, segundo o pensamento freudiano. E o próprio filme, que se encerra com reticências nos diz dessa perenidade.

E essa perenidade, essa continuidade da luta travada entre a vida e a morte, o bem e o mal, ou utopia e barbárie, está inscrita no momento histórico atual, tanto no Brasil como em todo o mundo. Por toda parte há uma ascensão expressiva do fenômeno fascista, exigindo uma mobilização das chamadas utopias, que urgem se reinventar e se reorganizar, para se contrapor a ele e preservar a continuidade da civilização.

É preciso preparar o estômago para vislumbrar a macabra obra humana, há cenas fortes da obra nazifascista, sem perder de vista que estamos falando do maior predador que jamais existiu, a obra mais destrutiva jamais criada pela natureza, ou por deus, como queiram. São os ciclos de luta intestina da nossa civilização, que se repetem em uma disputa violenta, por vezes até poética, de amor e ódio que, a meu ver, estão representadas nas reticências com que Sílvio Tendler encerra a sua obra.
 
No segundo encontro do 3º Ciclo de Cinema e Direitos Humanos nos foi apresentada a película Ação entre Amigos, do diretor Beto Brant, de 1998, que, ao final, provocou um silêncio sepulcral em toda a audiência. O filme que traz a história de três amigos que nos anos de chumbo (final dos anos sessenta, década de setenta e início dos oitenta) participaram da resistência à ditadura militar, nos coloca uma questão que vai muito além do resgate histórico produzido pela Comissão da Verdade durante os governos petistas, e que é uma questão crucial para o entendimento dos dias atuais no Brasil.

A ação entre os amigos se dá após um dos quatro companheiros descobrir que o torturador e assassino do regime, que os havia torturado e assassinado a companheira de um deles, permanecia vivo, apesar da divulgação de sua morte em um acidente aéreo. A ação de acerto de contas, de vingança mesmo, se torna uma tragédia que não apenas ceifa a vida do velho torturador, mas também a de dois componentes do grupo, a prisão de um deles e o aumento da tortura psicológica do último que, provavelmente, também seria preso por participação no evento.

Além de trazer um ralo panorama sobre aqueles eventos trágicos que fizeram parte de um período sombrio da história nacional, por meio da história de vida daqueles amigos que se apresenta alternadamente entre os dias atuais e flashbacks de memória daquele período por eles vividos, o filme nos traz, de maneira sutil, os efeitos deletérios da anistia ampla e irrestrita acordada com as elites no momento da "redemocratização" do país. A Ação se converte assim em uma resposta ao que ficou aberto, inconcluso, não resolvido, ou seja, a não criminalização e punição objetiva aos crimes e criminosos da ditadura militar.

O debate que se seguiu, com o professor doutor Rodrigo Czajka, do DECISO/UFPR, trouxe muitas perguntas sobre o momento dramático vivido no Brasil atual, com a ascensão do fascismo e o apoio de boa parte da população à repressão, à eliminação do diferente, e ao autoritarismo. O Brasil atual é um campo fértil para a ascensão de um regime totalitário, de viés civil ou militar, haja vista as condições plantadas pela direita a partir dos eventos de 2013, e do golpe de 2016, com o objetivo de implantação de seu projeto político-econômico neoliberal.

Hoje, no Brasil, o programa de governo ou projeto de nação mais bem cotado nas pesquisas para ascender ao poder é um não-programa ou um não-projeto, sustentado nas entrelinhas na continuidade do projeto econômico golpista, e objetivamente apenas em discurso de ódio aos negros, aos índios, às mulheres, aos homossexuais, aos pobres e à diferença. Ora, a não punição aos crimes e criminosos de um regime ditatorial sangrento, como o regime e a ditadura militar vivenciado pelo Brasil entre '64 e '85, relativisa a sua ação criminosa, escancarando as portas para o seu retorno, tutelado ou não pela força militar, mas certamente tutelado pela população deseducada.

Recentemente, o consórcio criminoso firmado entre as bancadas da Bala, do Biblia e do Boi, recebeu elogios de um antigo diretor da organização racista e criminosa Ku Klux Klan, mas também alertas de provável rompimento com a Alemanha e, consequentemente, a União Europeia. Para aqueles que apostam no “novo”, não deixa de ser uma novidade a União de uma ultra direita fascista, com tempero tupiniquim, com o um projeto econômico ultra neoliberal. Aqueles que sobreviverem poderão avaliar o resultado de uma aventura tão perigosa...
 
O terceiro encontro do 3º Ciclo de Cinema e Direitos Humanos, que trouxe o documentário Memória para Uso Diário, com direção de Beth Formaggini, foi um grito e um apelo ao bom senso. O documentário traz uma série de depoimentos de pessoas que vivenciaram os horrores da ditadura militar no Brasil, e a busca por desaparecidos e reparação dos crimes perpetrados por aquele regime sanguinário, que assombrou e continua assombrando o Brasil até os dias atuais. O filme mescla depoimentos sobre os crimes cometidos pela ditadura e crimes cometidos pela polícia do estado democrático, guardiã do status quo e do poderio econômico, deixando claro que a prática de extermínio do oponente, ou do Outro, é uma prática que se perpetuou nos sistemas de repressão do estado, mesmo durante a chamada Nova República.

O debate nos trouxe fatos estarrecedores sobre o período do regime militar e da ditadura, provocado pelo doutor Olympio de Sá Sotto Maior Neto, do MPPR que provocou a audiência para um debate acalorado, carregado de afetos e apelos ao bom senso, tendo em vista o momento ímpar de nossa história política, às vésperas de uma eleição que pode colocar um nazifascista na presidência da República. Um dado extremamente estarrecedor, trazido durante o debate, foi a prática genocida, perpetrada no período ditadura militar, contra a nação índigena Xetá, para roubo de terra e favorecimento de grupo econômico. Boa parte da nação Xetá foi dizimada. Os índios eram levados em caminhões e desapareciam, aqueles que não aceitavam ser levados eram fuzilados e, perversamente, aos que ficaram para trás, foi fornecido alimento invenenado. E isso só tem um nome: genocídio! Além dos depoimentos sobre os centros de tortura no Paraná, dos quais o mais notório se encontrava em Foz do Iguaçu, soubesse também que pequenos fazendeiros também foram presos e torturados naquele período. Ou seja, a ditadura não apenas matou seus oponentes políticos, torturou e matou também aqueles que, de uma forma ou de outra, atrapalhavam os planos financeiros e econômicos de uma elite atrasada e selvagem.

O período de transição da ditadura militar para o regime democrático foi coroado com acordos obscuros de proteção aos criminosos daquele regime e de favorecimento das elites econômicas e corruptas que compuseram com o regime de exceção. A constituição de '88, que trouxe alguns avanços no campo social, jamais foi, de fato, respeitada pelos governos que se seguiram, como parte do acordo firmado para o fim da ditadura, que permaneceu ativa em suas formas repressivas, ligadas ao aparelho de estado. Quando ascendeu ao poder um governo de esquerda no país, que para tanto migrou para o centro, e tentou implementar o mínimo do que era previsto no texto constitucional, as elites se sublevaram, promovendo o golpe parlamentar de 2016, e trazendo de volta a sombra da ditadura militar, na figura do candidato de ultra direita que se apresenta como favorito nas eleições de 2018.

Sobre o fim abstrato do regime ditatorial que vigorou oficialmente entre '64 e '85, não posso deixar de lembrar que após essa data corte, durante um movimento grevista geral, por melhores condições de trabalho, salário e atendimento à população, passamos por uma situação que não fica em nada a dever aos momentos de repressão do período oficial da ditadura militar. Juntamente com alguns colegas, - não sei precisar exatamente quantos éramos! - em um piquete na porta da garagem central de ônibus, fomos surpreendidos pelas forças de repressão que nos torturaram psicologicamente e nos mantiveram sumidos durante um certo tempo, enquanto discutiam o que iriam fazer conosco. Fomos presos por volta de 11 horas da noite e chagamos ao nosso destino por volta de 04 horas da manhã, de acordo com o horário do relógio de parede do local onde ficamos detidos. Nesse meio tempo, rodamos em camburões por estradas de terra, dentro do mato, sem ter a mínima noção de onde estávamos. A técnica de tortura psicológica era a seguinte: a uma certa altura o camburão parava no meio do mato e éramos retirados aos solavancos, ao que pensávamos: é nosso fim! Mas, na verdade, apenas éramos dirigidos a outro camburão, que continuava a louca corrida. Lembro que tive que acalmar um colega, que começou a ter falta de ar, e coloquei sua cabeça próximo às frestas do carro, pedindo que ele respirasse com calma que tudo acabaria bem. Quando finalmente chegamos ao destino, estávamos tão atordoados que não lembro até hoje onde foi que descemos. Não fomos registrados nem fichados, mas apenas encaminhados a celas individuais e imundas, após subir uma escada e colocados em celas que circundavam um átrio. Alí ficamos, sem lençóis, sem comida, sem água. Deitávamos e acordávamos para gritar pelos companheiros, com o objetivo de saber se todos permaneciam ali. Lembro-me perfeitamente da cela com cama de cimento armado, ligada à parede e do vaso quebrado e sujo, e de ratos enormes que circulavam de quando em vez, atravessando a cela. Assim ficamos por um longo período! Só fomos registrados quando, não sei como, nos descobriram e um advogado do Partido dos Trabalhadores foi nos resgatar daquele sequestro.

Uma colega de trabalho, cujo marido era delegado e participou da operação, contou-me logo depois que, enquanto estávamos presos, três delegados discutiam e divergiam sobre o que fazer conosco. Havia em pauta uma ideia de eliminação, uma de espancamento e outra de apenas registro de ocorrência, por “não estarmos mais sob a ditadura militar”. Um dos delegados era um notoriamente conhecido psicopata que, segundo um colega de faculdade que com ele trabalhava me relatou, pouco tempo depois, era uma pessoa que ficava nervoso diariamente e dizia que isso se dava porque precisava matar uma pessoa por dia para se acalmar. Algum tempo depois esse cidadão sofreu uma atentado, e morreu por ferimentos de 77 balas de fusil. Esse cidadão, no momento da prisão, levantou-me com apenas um braço apenas, pela alça do macacão que eu usava e disse para mim: isso lá é roupa de homem! E, em seguida, me jogou no camburão.

É caros amigos, o risco que corremos hoje é incomensurável! Além de perder o arremedo de democracia que nos foi permitido alcançar, e que aos poucos já vimos perdendo desde 2016, com a possível eleição de um nazifascista oriundo do exército, corremos o risco de perder definitivamente nossos direitos, inclusive o direito sagrado à própria vida...

E como, sabiamente, já anunciou o professor Vladimir Safatle, os tanques já começam a se posicionar...e as manobras de bastidores do exército pululam por toda parte, só não vê quem, infelizmente, tem menos de dois neurônios, ou realmente não quer ver...

 
No último encontro do 3º Ciclo de Cinema e Direitos Humanos, assistimos o filme Iracema: Uma transa amazônica, com direção de Jorge Bodanzki e Orlando Senna. O filme, rodado durante a década de setenta, ganhou vários prêmios internacionais e só foi liberado pela censura em 1981, por ter sido entendido como uma publicidade negativa do Brasil pela Ditadura Militar. Há um jogo interessante na trama entre a realidade cruel daqueles anos (miséria, violência, desmatamento, comércio ilegal de madeira, trabalho escravo, prostituição juvenil, alienação popular tutelada pela religião e pelo exército, invasão estrangeira) e o discurso neoliberal que começava a se fazer presente naquela época.

Pode-se dizer que os personagens centrais da trama, apesar de supostamente ocuparem campos opostos na história, fazem parte do mesmo ufanismo vigente naqueles tempos. Ambos, cada um a seu modo, foram cooptados por discursos falsos de possibilidades e sucesso. Iracema, uma adolescente que sai do mato para se encantar e desencantar com a vida “civilizada”, e Tião Brasil Grande, caminhoneiro que tenta sobreviver acreditando na máxima neoliberal, que tomava corpo naquela época, de que esforço pessoal, e apenas, isso, era a chave para o sucesso. A película traz imagens da construção da Transamazônica, uma das obras faraônicas do período da ditadura militar, alardeada à época como o caminho para o progresso da região, em meio às mazelas, reais até os dias atuais, da miséria, da desigualdade e da repressão.

A história de Iracema, uma bela mestiça da terra, é a metáfora perfeita da pátria, hoje mais que nunca, em tempos de exposição explícita de suas víceras, tão des-amada, tão des-idolatrada, desnudada em sua sina servil. Iracema era bonita e se encantava com os brilhos que a seduziam. Prostituiu-se, e por aí tentou achar uma saída para sua existência. Pegou uma carona e pensou ter, finalmente, encontrado seu rumo para o amor e uma vida melhor. Enganou-se e foi abandonada. Largada na vida, foi novamente enganada, foi jogada na estrada, foi acusada e espancada, e foi provavelmente estuprada pela repressão. Alguém tentou lhe estender a mão, mas ela acreditava no seu algoz. Acreditava que não poderia fazer nada além daquilo que já fazia, porque era burra.

Enfim, Iracema não acreditava mais em si mesma. Assim, ela foi decaindo cada vez mais, perdeu um dente, ganhou cicatrizes e nela não se via mais um fio de dignidade. Reencontrou aquele que lhe havia jogado na estrada pela primeira vez, que a despeito da própria miséria ainda acreditava no sucesso pessoal, no esforço que constrói o futuro do pobre, e que lhe incutiu na cabeça a ideia de sua burrice. Reconheceram-se e ela quis mais uma vez seguir com ele, que a desdenhou. Ela lhe pediu dinheiro que ele negou, e seguiu em frente, com seu esforço na busca de um sucesso que jamais chegará. Iracema, na beira da estrada, o xingou muitas vezes...e riu, riu de simesma, do caminhoneiro e do Brasil.

Sim, Iracema é uma metáfora mais que perfeita de uma terra e de uma gente maltratada, humilhada, enganada, controlada e violentada tantas e tantas vezes, e que não acredita em si mesma, mas que vai se virando pela vida. Toda essa gente vai seguindo como pode, recorrendo sempre ao algoz, e rindo, rindo muito de si mesma...e elegendo Projetos que dão continuidade à desconstrução do Estado, da Seguridade Social, da Educação Pública, que rejeita a intelectualidade, acrescido de Violência contra as chamadas minorias, os Movimentos Sociais e os Trabalhadores.

Triste Brasil!


Sérgio Moab Amorim de Albuquerque - CRP 08/08067-7
Psicólogo / Psicanalista / Servidor Público
Formação em Gestão Estratégica de Pessoas / Abordagem Psicanalítica / Sociologia Política
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