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domingo, 19 de agosto de 2012

VIOLÊNCIA E HUMANIDADE I


A violência contra a própria espécie - Um traço particularmente humano?!


                    Pensando na convivência humana e na violência que a permeia, escolhi um interessante relato do primeiro capítulo do trabalho acerca das origens biológicas da agressividade humana, intitulado “O macho demoníaco”, de Richard Wrangham[1]. Nesse trabalho, o autor busca encontrar, no estudo de nossos parentes mais próximos na escala evolutiva, os chimpanzés, a explicação biológica para a agressividade do homem voltada para sua própria espécie. A descrição a seguir se refere à sua chegada ao continente africano, onde foram desenvolvidas as suas pesquisas, em meio a conflitos políticos de extrema gravidade em Burundi. E os relatos de violência abaixo descritos dizem respeito, não a primatas, mas a seres humanos, ditos civilizados:




“Nos últimos anos, meia dúzia de ondas de matanças étnicas havia varrido havia varrido aquela pequena nação. Num mês, em 1972, os tutsis haviam assassinado todos os líderes hutus, e qualquer outro hutu que aparentasse ser alfabetizado. Dessa forma, embora constituíssem  apenas cerca de 15% da população, nas duas décadas seguintes os tutsis haviam passado a controlar o serviço público, as Forças Armadas e, num sistema de partido único, os escalões superiores do governo. Até 1993, quando o país desfrutou pela primeira vez em sua história eleições edemocráticas, todos os presidentes saído da maioria tutsi.


                        Das eleições de 1993 surgiu o primeiro presidente hutu de Burundi, um político moderado, que acreditava na não-violência e na reconciliação étnica, Melchior Ndadaye. Contudo, no início da manhã de 21 de outubro de 1993, quatro emses antes de pagarmos por nossos vistos, um tanque do exército abriu um buraco na parede branca de alvenaria do palácio presidencial e soldados radicais tutsis mataram a facadas o presidente Ndadye. Também assassinaram meia dúzia de altos funcionários do governo Ndadaye. Os ministros que sobreviveram se refugiaram atrás de tropas francesas num hotel em Bujumbura, capital de burundi.


Enquanto os ministros sobreviventes transmitiam pela Rádio Ruanda apelos para que o povo “se levantasse em armas, como um só homem, em defesa das instituições democráticas de Burundi”, os hutus pelo pais afora tomaram armas toscas, na sua maioria facões e lanças, e foram massacrando tutsis durante os três meses seguintes. Por seu lado, os soldados e civis tutsis massacravam hutus sempre que podiam.


                        Quando aterrissamos, no dia 12 de fevereiro, provenientes de Campala, o aeroporto de Bujumbura estava tranqüilo, quase vazio, vigiado por homens armados com fuzis. Alguém disse (em francês): “a estrada hoje está boa. Ontem, não estava. Amanhã, talvez não esteja.”  De modo que embarcamos numa van alugada e atravessamos as terras baixas, indo para oeste, na direção de Ruanda e do Zaire.


                        Burundi era verde, fresco e úmido. Cruzamos uma terra fértil, com lagos ondulantes de capim e campos estriados em que cresciam milho e mandioca. Havia rebanhos de gado de longos chifres, odores fortes, mulheres carregando enormes feixes de galhos retorcidos na cabeça e uma mulher envolta num pano, de pé, no campo, trabalhando com a enxada. Homens fardados, com ar hostil, portando fuzis, nos fizeram parar numa barreira na estrada, examinaram nossos documentos e depois nos deixaram passar.


                        Depois de algumas horas e de mais três barreiras na estrada, passamos pelo controle de imigração e alfândega, e entramos em Ruanda. A estrada fazia curvas pela colina, depois subia as montanhas, e foi se deteriorando, mas sempre serpenteando para cima, rumo a um lugar promissor onde nuvem e montanha se entremeavam despreocupadamente. Nós nos detivemos por um instante, para olhar para a amplidão de planícies de aluvião e montanhas acidentadas que se erguiam ao longe, ouvindo o rugir de um rio que deslizava lá embaixo. Retornamos então para a van e continuamos a nos deslocar por esse paraíso suspenso de vilarejos e pequenas áreas de plantio circundadas por bananeiras e cercas de bambu.


                        Os problemas ainda não tinham chegado a Ruanda. Ainda se passariam sete semanas, até 6 de abril, quando o presidente de Ruanda e o presidente interino de Burundi foram assassinados. Os presidentes regressavam juntos de uma conferência na Tanzânia quando o avião em que viajavam, ao aterrissar, foi derrubado sobre a capital de Ruanda por homens não identificados que atiraram do solo.


                        Numa réplica invertida da situação em Burundi, os hutus ruandenses controlavam o exército e o governo, enquanto os tutsis eram mantidos de fora. Nos três dias que se seguiram ao assassinato, o Exército e a milícia hutu começaram a levar a cabo uma campanha bem organizada de genocídio. O Exército executou todos os líderes da oposição: 68 tutsis e hutus moderados. A primeira-ministra Agathe Uwilingiyimana foi assassinada. Os guardas das Nações Unidas  que a protegiam foram torturados, tiveram seus órgãos genitais mutilados e, em seguida, foram assassinados. O ministro do Trabalho foi cortado em três pedaços, que foram utilizados como barreira de estrada.


                        Então começou a matança de verdade. Homens, mulheres e crianças tutsis foram massacrados em campos de refugiados da Cruz Vermelha, onde tinham buscado proteção. Num hospital, os pacientes e os funcionários tutsis foram mortos a golpes de facão, enquanto os médicos estrangeiros presenciavam a cena. Os membros das famílias tutsis que haviam se refugiado numa missão religiosa foram despedaçados com granadas de mão, depois seus corpos foram empapados com gasolina e queimados; os poucos sobreviventes que tentaram fugir foram mortos a golpes de facão. As estimativas do número de mortos elevaram-se a meio milhão de pessoas, cujo sangue e corpos, literalmente, desciam pelos rios daquele pequeno e lindo país. Segundo um reporte da News-week, “pilhas de cadáveres flutuavam como bonecas de pano”, deslizando pelo lamacento rio Rusumo em direção à Tanzânia. As autoridades de Uganda calcularam que dez mil corpos tinham descido pelo rio Kagera de Ruanda  para o lago Vitória, onde foram encalhar nas margens ugandenses.


                        Ngoga Murumba, um fazendeiro que foi contratado para retirar os corpos do lago e dar-lhes destino, descreveu uma lembrança confusa e estonteante de horror. Havia envolto em folhas de plástico e empilhado centenas de corpos, mas uma única imagem lhe perturbava a mente. “uma vez encontrei uma mulher”, disse ele. “Estava com cinco crianças amarradas ao seu corpo. Uma em cada braço. Uma cada perna. Uma nas costas. Ela não tinha nenhum ferimento...” (WRANGHAM, 1998, p. 12-15)


                    O trabalho de Wrangham se constituiu na observação do comportamento social de chimpanzés em seu habitat natural, o que o levou a relacionar uma série de atitudes e comportamentos semelhantes aos da espécie humana. Segundo ele “a luta dos primatas pelo poder era de fato política. Tal como a política humana, ela levava à violência quando as negociações fracassavam”.(WRANGHAM, 1998, p.159-160). Suas observações o levaram a concluir que, a exemplo dos humanos, esses primatas planejam ataques e promovem matanças no seio de sua própria espécie, exercendo uma capacidade de violência sem precedentes. Seus estudos o levaram a concluir que “só chimpanzés e humanos regularmente matam adultos de sua própria espécie. Os chimpanzés e os humanos também compartilham outros males: assassinatos políticos, espancamentos e estupros”.(WRANGHAM, 1998, p. 164). A partir desses estudos, busca dar suporte à tese, segundo a qual, há bases biológicas de explicação da violência nos próprios seres humanos. Seus estudos e conclusões nos remetem ainda a outro campo de estudo, às elaborações da abordagem psicanalítica acerca da agressividade humana, dirigida ao ambiente e aos semelhantes, e que em última análise é dirigida a si mesmo.




Sérgio Moab Amorim de Albuquerque - CRP 08/08067-7
Psicólogo / Psicanalista / Servidor Público
Especialista em Gestão Estratégica de Pessoas / Abordagem Psicanalítica / Sociologia Política
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[1] Richard Wrangham é professor de Antropologia da Universidade de Harward e desenvolveu o trabalho ora citado, através de pesquisas de campo com primatas no continente africano.

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