A violência contra a própria espécie - Um traço particularmente humano?!
Pensando na convivência
humana e na violência que a permeia, escolhi um interessante relato do primeiro
capítulo do trabalho acerca das origens biológicas da agressividade humana,
intitulado “O macho demoníaco”, de Richard Wrangham[1]. Nesse
trabalho, o autor busca encontrar, no estudo de nossos parentes mais próximos
na escala evolutiva, os chimpanzés, a explicação biológica para a agressividade
do homem voltada para sua própria espécie. A descrição a seguir se refere à sua
chegada ao continente africano, onde foram desenvolvidas as suas pesquisas, em
meio a conflitos políticos de extrema gravidade em Burundi. E os relatos de
violência abaixo descritos dizem respeito, não a primatas, mas a seres humanos,
ditos civilizados:
“Nos últimos anos, meia dúzia de
ondas de matanças étnicas havia varrido havia varrido aquela pequena nação. Num
mês, em 1972, os tutsis haviam assassinado todos os líderes hutus, e qualquer
outro hutu que aparentasse ser alfabetizado. Dessa forma, embora
constituíssem apenas cerca de 15% da
população, nas duas décadas seguintes os tutsis haviam passado a controlar o
serviço público, as Forças Armadas e, num sistema de partido único, os escalões
superiores do governo. Até 1993, quando o país desfrutou pela primeira vez em
sua história eleições edemocráticas, todos os presidentes saído da maioria
tutsi.
Das
eleições de 1993 surgiu o primeiro presidente hutu de Burundi, um político
moderado, que acreditava na não-violência e na reconciliação étnica, Melchior
Ndadaye. Contudo, no início da manhã de 21 de outubro de 1993, quatro emses
antes de pagarmos por nossos vistos, um tanque do exército abriu um buraco na
parede branca de alvenaria do palácio presidencial e soldados radicais tutsis
mataram a facadas o presidente Ndadye. Também assassinaram meia dúzia de altos
funcionários do governo Ndadaye. Os ministros que sobreviveram se refugiaram
atrás de tropas francesas num hotel em Bujumbura, capital de burundi.
Enquanto os ministros sobreviventes
transmitiam pela Rádio Ruanda apelos para que o povo “se levantasse em armas,
como um só homem, em defesa das instituições democráticas de Burundi”, os hutus
pelo pais afora tomaram armas toscas, na sua maioria facões e lanças, e foram
massacrando tutsis durante os três meses seguintes. Por seu lado, os soldados e
civis tutsis massacravam hutus sempre que podiam.
Quando
aterrissamos, no dia 12 de fevereiro, provenientes de Campala, o aeroporto de
Bujumbura estava tranqüilo, quase vazio, vigiado por homens armados com fuzis.
Alguém disse (em francês): “a estrada hoje está boa. Ontem, não estava. Amanhã,
talvez não esteja.” De modo que
embarcamos numa van alugada e atravessamos as terras baixas, indo para oeste,
na direção de Ruanda e do Zaire.
Burundi
era verde, fresco e úmido. Cruzamos uma terra fértil, com lagos ondulantes de
capim e campos estriados em que cresciam milho e mandioca. Havia rebanhos de
gado de longos chifres, odores fortes, mulheres carregando enormes feixes de
galhos retorcidos na cabeça e uma mulher envolta num pano, de pé, no campo,
trabalhando com a enxada. Homens fardados, com ar hostil, portando fuzis, nos
fizeram parar numa barreira na estrada, examinaram nossos documentos e depois
nos deixaram passar.
Depois
de algumas horas e de mais três barreiras na estrada, passamos pelo controle de
imigração e alfândega, e entramos em Ruanda. A estrada fazia curvas pela
colina, depois subia as montanhas, e foi se deteriorando, mas sempre
serpenteando para cima, rumo a um lugar promissor onde nuvem e montanha se
entremeavam despreocupadamente. Nós nos detivemos por um instante, para olhar
para a amplidão de planícies de aluvião e montanhas acidentadas que se erguiam
ao longe, ouvindo o rugir de um rio que deslizava lá embaixo. Retornamos então
para a van e continuamos a nos deslocar por esse paraíso suspenso de vilarejos
e pequenas áreas de plantio circundadas por bananeiras e cercas de bambu.
Os
problemas ainda não tinham chegado a Ruanda. Ainda se passariam sete semanas,
até 6 de abril, quando o presidente de Ruanda e o presidente interino de
Burundi foram assassinados. Os presidentes regressavam juntos de uma
conferência na Tanzânia quando o avião em que viajavam, ao aterrissar, foi
derrubado sobre a capital de Ruanda por homens não identificados que atiraram
do solo.
Numa
réplica invertida da situação em Burundi, os hutus ruandenses controlavam o
exército e o governo, enquanto os tutsis eram mantidos de fora. Nos três dias
que se seguiram ao assassinato, o Exército e a milícia hutu começaram a levar a
cabo uma campanha bem organizada de genocídio. O Exército executou todos os
líderes da oposição: 68 tutsis e hutus moderados. A primeira-ministra Agathe
Uwilingiyimana foi assassinada. Os guardas das Nações Unidas que a protegiam foram torturados, tiveram
seus órgãos genitais mutilados e, em seguida, foram assassinados. O ministro do
Trabalho foi cortado em três pedaços, que foram utilizados como barreira de
estrada.
Então
começou a matança de verdade. Homens, mulheres e crianças tutsis foram
massacrados em campos de refugiados da Cruz Vermelha, onde tinham buscado
proteção. Num hospital, os pacientes e os funcionários tutsis foram mortos a
golpes de facão, enquanto os médicos estrangeiros presenciavam a cena. Os
membros das famílias tutsis que haviam se refugiado numa missão religiosa foram
despedaçados com granadas de mão, depois seus corpos foram empapados com
gasolina e queimados; os poucos sobreviventes que tentaram fugir foram mortos a
golpes de facão. As estimativas do número de mortos elevaram-se a meio milhão
de pessoas, cujo sangue e corpos, literalmente, desciam pelos rios daquele
pequeno e lindo país. Segundo um reporte da News-week, “pilhas de cadáveres
flutuavam como bonecas de pano”, deslizando pelo lamacento rio Rusumo em
direção à Tanzânia. As autoridades de Uganda calcularam que dez mil corpos
tinham descido pelo rio Kagera de Ruanda
para o lago Vitória, onde foram encalhar nas margens ugandenses.
Ngoga
Murumba, um fazendeiro que foi contratado para retirar os corpos do lago e
dar-lhes destino, descreveu uma lembrança confusa e estonteante de horror.
Havia envolto em folhas de plástico e empilhado centenas de corpos, mas uma
única imagem lhe perturbava a mente. “uma vez encontrei uma mulher”, disse ele.
“Estava com cinco crianças amarradas ao seu corpo. Uma em cada braço. Uma cada
perna. Uma nas costas. Ela não tinha nenhum ferimento...” (WRANGHAM, 1998, p.
12-15)
O trabalho de Wrangham se
constituiu na observação do comportamento social de chimpanzés em seu habitat
natural, o que o levou a relacionar uma série de atitudes e comportamentos
semelhantes aos da espécie humana. Segundo ele “a luta dos primatas pelo poder
era de fato política. Tal como a política humana, ela levava à violência quando
as negociações fracassavam”.(WRANGHAM, 1998, p.159-160). Suas observações o
levaram a concluir que, a exemplo dos humanos, esses primatas planejam ataques
e promovem matanças no seio de sua própria espécie, exercendo uma capacidade de
violência sem precedentes. Seus estudos o levaram a concluir que “só chimpanzés
e humanos regularmente matam adultos de sua própria espécie. Os chimpanzés e os
humanos também compartilham outros males: assassinatos políticos, espancamentos
e estupros”.(WRANGHAM, 1998, p. 164). A partir desses estudos, busca dar
suporte à tese, segundo a qual, há bases biológicas de explicação da violência
nos próprios seres humanos. Seus estudos e conclusões nos remetem ainda a outro
campo de estudo, às elaborações da abordagem psicanalítica acerca da agressividade
humana, dirigida ao ambiente e aos semelhantes, e que em última análise é dirigida
a si mesmo.
Sérgio Moab Amorim de
Albuquerque - CRP 08/08067-7
Psicólogo / Psicanalista / Servidor Público
Especialista em Gestão Estratégica de Pessoas / Abordagem Psicanalítica / Sociologia Política
Copyright © 2012 by SÉRGIO MOAB AMORIM DE ALBUQUERQUE All rights reserved
Psicólogo / Psicanalista / Servidor Público
Especialista em Gestão Estratégica de Pessoas / Abordagem Psicanalítica / Sociologia Política
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[1]
Richard Wrangham é professor de Antropologia da Universidade de Harward e
desenvolveu o trabalho ora citado, através de pesquisas de campo com primatas
no continente africano.
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